testing a new face for the old blog. tried other platforms, but no other seemed good enough.

December 28, 2004

[praise darkness...]

[praise darkness...]

Devagar, o sol, eterna luz do dia, esconde-se por detrás da longínqua linha do mar sem fim, por entre as negras nuvens que em tão remota distância se começam a formar. Os céus de cristal azul alteram-se, um prisma de cores radiantes banha agora a esfera celeste, desvanecendo-se a radiância na escuridão que do céu começa a tomar conta a Este.

Uma brisa fria sopra subitamente de Oeste, do horizonte de luz em declínio, da escuridão anunciada. Não se ouve mas sente-se, o avanço inexorável da Noite, em passinhos suaves como veludo. Sonhos desvanecem-se na queda da aurora, o silêncio apenas cortado pelo som constante da rebentação contra os rochedos ancestrais toma conta do cenário, envolve-me suavemente como num traiçoeiro abraço.

Escurece. Não ainda, que o brilho do dia ainda respira por ora. Mas já inevitáveis são as trevas.

Vem, doce Noite. Aniquila a luz da ilusão, embala-me ao som do teu silêncio, leva-me contigo para lugar nenhum...

(fotografia por "Freyja")

December 24, 2004

[Sofia (uma rapariga como outra qualquer) II]

[Sofia (uma rapariga como outra qualquer) II]

"Passeio solitária pelas ruas desta cidade, por efémeros mas longos dias convertida, por efeito dos inúmeros motivos de forma e natureza diversa, se bem que com objectivo similar, que decoram todo o espaço, em tremendo pinheiro de Natal. Está frio, sinto-o entrar em mim por todos os sítios por onde pode - e até, para minha surpresa, por alguns por onde supostamente não deveria conseguir - e instalar-se junto da minha pele, desconfortavelmente. Sinto um húmido arrepio atravessar-se a espinha de uma ponta à outra, enterro as mãos nuas bem fundo nos bolsos do casaco. Não, não é psicológico, o frio. Pelo contrário: é real, bem real, demasiado real. Não há consolo, afastamento, alheamento mental que lhe valham. Pelo menos quando se deambula pelas ruas, não tão agasalhada como talvez devesse, em vésperas do solstício de Inverno...

Cânticos de Natal ouvem-se aqui e além, invadem-me a mente fria. Conheço-os; recordo-os das vezes incontáveis que os ouvi na televisão, na rádio, na música ambiente de algum elevador. Mas não são estes que me ocorrem; são, sim, aqueles que em criança aprendi na Igreja, as melodias alegres e ritmadas que louvavam o nascimento de um menino, desprovido de qualquer riqueza. Observo na montra rodeada de luzes coloridas de uma loja um presépio, paro por instantes a olhar para o pequeno cenário da Galileia aqui, nesta montra: a cabana de colmo, os montes de palha aqui e além; o burro e a vaca, seus habitantes de sempre, perto daqueles que a eles se acolheram numa qualquer noite fria - José e Maria -, pois que os seus os desprezaram, ajoelhados perante uma manjedoura de madeira irregular onde jaz, alheio ao cenário, no desconhecimento talvez do seu inescapável destino que para sempre mudaria o curso da História, um menino recém-nascido, de nome Jesus, a quem os profetas e sibilas, nas suas visões evanescentes, atribuíram a redenção dos homens; junto da cabana, como que a aproximar-se, um grupo de pastores; atrás, mais longe, ainda perante uma longa jornada, três reis magos que de terras distantes saíram para louvar Aquele que anunciará a Boa Nova, e para a ele ofertarem prendas dignas de monarcas; no topo da cabana, qual sinal de júbilo celestial, uma estrela repousa, adivinhando-se o coro de anjos entoando coros fantásticos em seu redor. Sorrio, triste. Como chegou o mundo a este ponto? Isto que aqui tenho diante os meus olhos, isto que está representado do outro lado desta lisa superfície de vidro é o Natal, o verdadeiro Natal - o nascimento do Salvador. Nele repousa, qual tesouro há muito esquecido pelos homens pelos quais nasceu há mais de dois mil anos, o verdadeiro espírito de Natal. Que tem ele a ver com o velho bonacheirão, de barbas e bigode de neve, vestido de rubro vermelho, que distribui prendas pelo mundo inteiro, atravessando os céus num trenó alegadamente mágico puxado por renas? Que tem o Natal a ver com o consumismo desenfreado, batuta invisível mas incontornável que pauta o ritmo da sociedade de hoje? Ó avó, que saudade das tuas prendas dadas, com um sorriso nos teus lábios, dizendo que era pelo Menino Jesus... pois que dele era, de facto, a noite da consoada; porque cruelmente lha tiraram...? Nos tempos modernos, como se explica a uma criança que, afinal, o Pai Natal não existe, e que, afinal são os seus pais e familiares que lhe dão os presentes? Que sabias tu disso, avó? Nada, nem precisavas. Deus existia, tinhas a certeza dele. Todos a tinham. O resto, seriam histórias, fantasias, devaneios para entreter a imaginação, que a felicidade deles não precisava para o que quer que fosse.

Retomo a marcha, enfrentando o frio da rua, ainda com a imagem do presépio na mente. Não me identifico com o catolicismo, pelo menos não mais. Considero-me cristã, se bem que não praticante, não por teima, mas por opção, por filosofia, se assim se quiser considerar. A minha mente é demasiado livre, incapaz de se prender a um qualquer ponto do imenso vazio que a rodeia. E entendo a fé é algo que se sente cá dentro, não como algo que se mostra lá fora; que sentido fazem, então, os rituais? Para quê deixar-me levar numa desfilada de encenações quando tudo aquilo que verdadeiramente conta está dentro de mim? Terei porventura menos fé do que uma daquelas senhoras - beatas, como pejorativamente se costuma dizer - que rezam de manhã, à tarde e à noite, vão à missa a cada domingo e dia santo, seguem o terço e tudo mais? Serei descrente por não fazer tudo isso? Sei que existes, Deus, que deves existir algures, mas isso é algo que não sei explicar, e que já desisti de tentar. Descobri-lo-ei um dia - descobrir-te-ei um dia - para o bem ou para o mal, não importa. Ainda assim, entristece-me pensar que a Humanidade foi capaz de deturpar o Natal a este ponto. A sua essência original perdeu-se, diluiu-se no meio da massa inerte, resiste nos corações daqueles poucos que recordam ainda a história do nascimento de Jesus. Mas estes poucos não se vêem na turba inconstante, na multidão que nesta época invade os centros comerciais, compra avidamente prendas para toda a gente, bombardeia amigos, conhecidos, e, até, no caso de alguns com menos decência - ou talvez não -, inimigos com mensagens de natal por telemóvel, cumprimenta meio mundo com um estupidificante sorriso de alegria forjado no rosto quase à martelada, ou longamente ensaiado para a ocasião festiva... qual ocasião festiva?

Às vezes penso que o erro deve ser mesmo meu. Porque haveria eu de estar certa e meio mundo errado? Afinal, eu é que sou a outsider, a fora do mundo... a verdade é que o Natal pouco ou nada me diz. Imagino que seja triste dizer uma coisa destas numa época destas, mas é verdade. Desconheço quase por completo a tradição de juntar a família na consoada para um jantar, uma vez que a minha estrutura familiar para além do meu núcleo foi, é e será sempre incapaz de tal - ao menos não a posso acusar de hipocrisia, tenho de o admitir. Época de paz, de amor, de reconciliação, diz toda a gente em toda a parte. Essa era uma parte da mensagem original. Mas era apenas o princípio. O Natal é só um dia! Um dia de inigualável pureza, irremediavelmente convertido à hipocrisia e ao cinismo pelo culto pagão da modernidade e do eterno consumo... Porque sorriem as pessoas agora, quando andam trombudas durante os restantes trezentos e sessenta e quatro (ou cinco) dias do ano? Porque se juntam agora, se nos outros dias não foram capazes sequer de trocar um singelo telefonema, uma carta com duas palavras que fossem? Porque se deve amar agora, quando tudo à nossa volta no restante tempo nos ensina a odiar? Época de paz? O meu espírito está em guerra, agora, mais do que nunca. Porque haveria ele de me dar tréguas neste momento?"

(João Campos (Fallen Angel), Sofia, excerto do capítulo 2)

December 19, 2004

[time...]

[time...]

... uma pequena cobra que espreita por entre as irregulares pedras da fonte, dançando embalada pelo mágico som da água em mansa queda, ao ritmo da fria brisa que de parte incerta sopra, suave, como um sussuro... a luz cristalina do entardecer que por entre as persistentes nuvens abre caminho, cedendo tranquilamente, por mais uma volta do ciclo eterno, o lugar ao crepúsculo, à escuridão que nunce verdadeiramente nos envolve... confidências sérias, riso, um compromisso futuro que não se afigurará tão distante talvez, palavras trocadas no silêncio que nos envolve em sonho, o passado ancestral esculpido em pedra a cada esquina, o verde natural sempre presente, o inconstante bulício humano que se desvanece... há muito que me esquecera da sensação; e, apesar de nunca ter lá estado antes, senti-me em casa, como se tudo aquilo que contemplava ou concebia como existente para além da escassa visão que as fragas de tons esverdeados do fofo musgo me permitiam fosse meu, nosso, só nosso... não senti Tempo, não senti dor, não senti mágoa... Apenas um imenso apaziguamento interior, uma sensação de leveza de espírito, de evanescência... tudo se dissolve neste final de tarde infinitamente doce, onde tudo e nada importa, onde a descoberta do mundo e de nós se tornam numa caixinha de supresas... Contemplo a luz a declinar no horizonte, ouço o renascer dos sons da noite que chega, a passinhos mansos para nos não perturbar, e é como se sentisse o Futuro a aproximar-se, velado no surpreendente sabor que me dás a provar... um Futuro onde a luz pode nascer, onde concebo acreditar na sua presença, na sua radiante aura...

Um momento perfeito...

December 16, 2004

[Sofia]

(Hoje não irei fazer reflexões metafóricas, divagações, devaneios (ou não?). Deixo-vos um excerto escrito por mim, de uma ideia que já cá andava há algum tempo, e que comecei a materializar. Estes são os primeiros parágrafos? espero que gostem...)

[Sofia]


"Não sei porque parece incomodar tanto as pessoas a solidão, o silêncio. Há anos que penso nisto, e nunca consegui chegar a nenhuma conclusão que à minha compreensão se afigure como minimamente válida. Será por a sucessão dos dias no inexorável decurso do tempo ter, ou aparentar ter, um ritmo absolutamente vertiginoso? Há algo de estranho em tudo isto. Vivo num mundo de multidão em inerte movimento, inconstante, indiferente a si mesmo e à sua própria existência. Não há consciência, não há interacção no seio da massa. Nela, estamos todos juntos, mas todos invariavelmente sozinhos; qual é a diferença, então, que faz toda a gente olhar para mim com uma expressão que reflecte uma pluralidade de sentimentos, que oscilam entre os desprezo, a pena, a estranheza, quando me sento só, na mesa de um qualquer canto do bar da escola, a fumar um cigarro e a desvanecer a minha imaginação no ténue fumo que a baforadas regulares sai da sua ponta incandescente?

Não correspondo ao padrão, bem o sei. Devo, aos olhos do mundo em permanente agitação irreflectida, sem rumo ou destino, assemelhar-me a uma proscrita, talvez. Não está longe da verdade; desde cedo que me habituei a estar sozinha, a conviver comigo na minha solidão, na minha imaginação. Nada de intencional, de premeditado; proporcionou-se assim, simplesmente. Não tendo uma família na tradicional significação do termo - que é como quem diz, um grupo de parentes unidos, sempre presentes ainda que distantes, que se juntam nas festas, convivem, preocupam-se -, tive de aprender a lidar com isto em criança.

Sempre fui introvertida por natureza; e esta propensão do meu espírito acabou por, ao longo dos anos, me afastar do mundo de brincadeira e camaradagem dos meus colega de escola. Não por não simpatizar com eles, bem pelo contrário. Simplesmente era bem mais fácil para mim perder-me nos meus devaneios, fitando o recreio com um olhar exterior vazio que na sua essência contemplava uma vastidão de mundos fantásticos que mal conseguia conceber. Não conseguia dar o primeiro passo para me aproximar de alguém, meter conversa, brincar, rir. E, entre crianças, quem procura puxar para si alguém que está fora porque quer - ou porque não quer -, ainda que isso não corresponda bem à realidade? Não se pode exigir isso de crianças em idade escolar, num ciclo tão singular do desenvolvimento. E, quando se entra na adolescência, a situação evolui. Para pior. Se em criança não me identificava com as brincadeiras de bola e outras mais ou menos agressivas dos rapazes, nem com o mundo elementar das brincadeiras de bonecas das raparigas - que, diga-se de passagem, consistem em formar famílias, criar pseudo-relações à imagem dos papás e das mamãs, ter filhotes, uma casinha engraçada; a coisa, diga-se de passagem, não vai muito mais além - também agora, que sou adolescente, não me identifico com os temas de conversa que permitem a integração num grupo e que me abririam as portas ao mundo da companhia, do convívio - em suma, do mundo não solitário. Tudo me parece tão sem importância, tão... fútil? Não sou melhor nem pior do que ninguém; serei, quanto muito diferente. Mas desde quando ser diferente tem forçosamente de ser mau?"

(...)

(Joao Campos, Sofia)

December 14, 2004

[burned into oblivion - the freedom of the daybreak]

[burned into oblivion - the freedom of the daybreak]



E eis que vi. Simplesmente. Vi aquilo que só então percebi que não queria ver, que jamais quisera ver, mas que estava ali, reluzente como mercúrio.

Ingenuamente julguei que pudesse ser visão, alucinação, devaneio inconstante de uma mente febril; acaso de súbita loucura de uma imaginação já de si débil, errática, quase destrutiva, no limiar da insanidade. Fechei os olhos, voltei as costas, recuei. Hesitei, disperso, confuso, fragmentado. Abri por fim os olhos, inspirei fundo, como se no frio ar da noite existissem algumas moléculas errantes de coragem que me insuflassem de força, e olhei novamente.

Nada mudou. Ainda ali estava, exactamente no mesmo lugar, mas agora com uma expressão marcadamente trocista, imponente padrão da vitória que marca a minha derradeira derrota. Não consegui desviar o olhar. Tempo e Espaço desvaneceram-se, perdi-me no impetuoso turbilhão de imagens em cadeia que subitamente assalta o meu espírito, domina os meus pensamentos, tolda os meus sentidos. Espectros - ilusórios, talvez? - que conscientemente aceitei mas que no inconsciente veementemente recusei, e cuja existência temi mais do que tudo. Meu Deus, como me enganei..! Quero fugir, desaparecer, tornar-me etéreo com a brisa da noite e nos seus braços gélidos voar, voar para longe, até ao infinito, até lugar nenhum... até um lugar sem trevas nem luz, onde o nada que sou se funda com o nada que é em si, e que dessa fusão seja criado nada... ou, num toque de amarga ironia do Destino, que brote espontaneamente alguma coisa... mas é tarde de mais, é tarde de mais...

Não há retorno. Solidão, minha eterna escolha, companheira última entre as quatro paredes inertes desta cela vazia onde entrei. Hesitei, por instantes, trespassou-me a mente a ideia de desistir de tudo, de suplicar, de me entregar à morte, no momento último antes de a pesada porta de ferro se fechar e de inevitavelmente me mergulhar no vazio caótico do espelho da minha própria dor.

"A aurora chegará", sussurra uma voz, nem sei bem vinda de onde... é meiga, doce, como nos poucos sonhos puros que ainda me restam... és tu? Que queres dizer? Esperança? Ou um fim inevitável? Devo entregar-me, render-me a esta força que me esmaga sem me tocar? Ou antes devo estoicamente resistir, aguentar..?

Aguentei. Por ti, na esperança que as palavras fossem tuas. Agora espero a tua aurora.

December 10, 2004

[storm inside and out - thoughts in chaos I]

[storm inside and out - thoughts in chaos I]


Sento-me à janela deste quarto soturno e relembro. Imagens difusas de tempos passados e futuros, cenários evanescentes que não sei se efectivamente vi. Cai a noite, nuvens de tempestade cobrem o horizonte, relâmpagos fulgurantes iluminam as trevas que o crepúsculo instala. Vejo-as, contemplo-as desta distância que decerto alcançarão. Não as temo. Sinto-me confortável no meio do caos exterior, do turbilhão que se inexoravelmente se aproxima, ameaçando a minha instalada melancolia.

Uma sucessão de intermitentes perguntas ocupa momentaneamente a minha mente, violentas como a tempestade longínqua que o meu olhar vazio fita. Não respondo, pois que há muito que as suas respostas se me escapam como areia entre os dedos quando nos meus tempos de criança a tentava suster. Exercício fútil, tão fútil como os pensamentos suicidas que me abalam. Que a morte defina a vida... mas que não a oriente, que não a governe. Jamais entenderei os devaneios da minha imaginação, mesmo os que qualquer um designaria de positivos, que há muito se evadiram dela. Não me entendo a mim; como poderei, então, almejar entender os outros..?

Estou sozinho mas não estranho. Não mais, que a ela já me acostumei há muito. Sabe-lo bem. Ainda assim, atreves-te a violar a minha melancolia solitária, atravessas as trevas do quarto, sentas-te a meu lado. Nada dizes, fitas a tempestade com um olhar nostálgico. Vejo os teus olhos azuis perderem-se nela, deixo-me embalar pelo ondular suave dos teus negros cabelos lisos ao vento frio da noite. Leio na tua expressão doce a minha dor, sinto na tua alma ardente a minha melancolia. Como tudo está tão errado, meu Deus..! Devaneios que não fazem sentido, recordações persistentes que se impõem e de seguida desaparecem, resoluções que tanto custam e que logo são anuladas... sinto-me tornar-me etéreo, desvanecer-me na brisa, envolver-me no centro em erupção da tempestade. Não estou aqui, estou em parte nenhuma. Perdido, encontrado, algures, onde? Não o sei, não o sabes, ainda que o soubesses... vejo-me em ti, não te vejo em mim, pois que nem eu me vejo mais em mim...

Recordo quem fui, quem sou. Reconstruo-me de novo a partir de fragmentos, como se estivesse a caminhar em cima de cadáveres do passado. Não sei o caminho que se esconde para além da tempestade. Não sei o caminho que se esconde para além do indigo dos teus radiantes olhos. Não sei...

... qual o sentido de tudo isto? É real, ao menos..?

December 04, 2004

[the last run, the last stand, the last fight - for there are somethings that simply cannot be changed]

[the last run, the last stand, the last fight - for there are somethings that simply cannot be changed]


Gotas frias caem dos céus nublados, batem-me no rosto. Ignoro-as. Continuo a andar, indiferente à chuva, ao frio, à escuridão cortada pela pálida lua que espreita por entre as nuvens opacas no limiar do horizonte.

Encontro-a, por fim, num lago imenso. Imóvel, contempla os céus de amena tempestade com um olhar vazio, uma expressão etérea, tão etérea como ela própria. Está diferente. Perdeu a sombra - talvez por estar num mundo de sombras? Ó seu olhar tornou-se sonhador, distinto do que antes conheci mas igualmente belo. Não se apercebe da minha presença, ou pelo menos finge não se aperceber.

"Parece que desta vez sou eu que interrompo a tua solidão."

Ela sorri vagamente, sem se virar para mim. "Não propriamente. Esperava que aparecesses, mais cedo ou mais tarde."

Aproximo-me dela, fico ao seu lado. Contemplo a distante lua. Por segundos, ambos nos quedamos imóveis, silenciosos. O vento sopra, suave, frio, como um suspiro.

"Ajuda-me", digo-lhe, por fim.

"Estás perdido, não é?", pergunta-me ela, olhando para mim. Sei que ela sabe exactamente o que se passa comigo, apesar de não fazer a mais pequena ideia como. "Pensaste, fugiste, enganaste-te... e agora cais em ti, olhas para trás e percebes tudo. Olhas para a frente... e não percebes nada."

Rio-me amargamente. "Precisamente..."

"O que vês tu, quando olhas para trás?"

"Vejo uma perda tremenda. Silêncio. Um silêncio onde nada foi dito, mas devia."

"E quando olhas para a frente..?"

Não respondo.

Num gesto suave, ela estende a mão para o meu peito e segura o cristal incandescente. "Não vês nada quando olhas para a frente porque não há lá nada para veres. Mas tu sabes o que podes ver, assim como o que não poderás ver. Já deste o passo mais importante, que foi assumires isso para ti."

"E como sabes tu isso?", pergunto-lhe quase instantaneamente.

"Se assim não fosse", responde ela, com um sorriso, "não estarias aqui, agora."

Desvio o olhar, volto a fitar a lua, angustiado perante a revelação de mim mesmo nos seus lábios sensuais, na sua voz doce. Não percebo como.

"Há coisas que simplesmente não podem ser mudadas", continua ela. "Não importa se lutamos contra elas ou se fugimos delas para o mais longe possível... elas permanecem, ainda que nas sombras, até que voltam a emergir. Por mais que as queiramos recusar."

"Então e que posso eu fazer?"

"A escolha é tua, como sempre o foi, talvez. Podes fazer o que quiseres."

"Não será tarde demais?"

"Só o saberás se tentares."

"E será que devo?"

"Segue o teu coração, planeswalker. Ele estará certo. E lembra-te da tua própria filosofia: é melhor te arrependeres de algo que fizeste... o Futuro te dirá se a tua escolha foi a acertada. O mesmo Futuro que te atormentará com um eterno 'e se..?' no caso de optares ignorar tudo isso que tens aí... nesse cristal."

Seguro o cristal rubro, fixo o olhar nele por momentos. Sorrio. Tantas perguntas que estão sem resposta... tanta coisa que não consigo ver... mas que não conseguirei ver jamais se não me atrever a dar um passo em frente.

Olho para a lua. Chega, penso para mim. Não posso continuar neste caminho que não me levará a lugar nenhum. Um rumo define-se agora, neste momento. Sem pensar. Apenas a fazer o que a anjo me disse... seguir o coração.

"Obrigado", digo-lhe.

"Não agradeças", responde ela, dando-me a mão. "Vai. Não olhes para trás. Não mais. Acredita em ti... e luta."

Olho para ela a derradeira vez. Permanece um enigma para mim. Mas um enigma que sei que surgirá sempre que eu precisar. No fundo... no fundo sei quem ela é, e porque me ajuda. Mas não importa.

Há coisas que não podem ser mudadas, disse ela. Que esta seja uma delas, penso, desvanecendo o meu corpo deste mundo sombrio e voltando ao caos do espaço entre mundos, em busca de algo que não mais estou disposto a perder.

December 03, 2004

[A persistência da memória...]

[A persistência da memória...]


... contra a vontade, contra o desejo ardente de simplesmente esquecer, de erradicar da mente um sentimento que me consome, que me lentamente me destrói, que me impede de prossegur... por quê e para quê, se nada mais existe aqui, onde me encontro, perdido, saído da voragem impiedosa da tempestade da vida..?

(Quadro de Salvador Dalí, "A Persistência da Memória")

December 01, 2004

[Sorrow as devastation gives place to oblivion - somewhere I belong... far from memories...]

[Sorrow as devastation gives place to oblivion - somewhere I belong... far from memories...]



"Entre por essa porta agora
E diga que me adora
Você tem meia hora
P'ra mudar a minha vida
Vem vambora
Que o que você demora
É o que o tempo leva

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Dentro da noite veloz

Ainda tem o seu perfume pela casa
Ainda tem você na sala
Porque meu coração dispara
Quando tem o seu cheiro
Dentro de um livro
Na cinza das horas"

Ouço o eco desta música pelo caos, nas profundezas recônditas da minha mente. Jamais terei alguma certeza sobre o seu verdadeiro significado naquele momento... mas lamento. Lamento ter ignorado aquela voz triste... lamento-o agora, que a destruição se aproxima deste campo de batalha já de si abandonado e devastado. De que me serve pensar nisso quando tudo é reduzido a nada? Mais um mundo perdido... sinto-te arder no meu peito, mágoa sentida ainda presente no interior do rubro cristal. Estaremos condenados a ser julgados por única acção... mas pior do que isso, bem pior, é pagar o preço dessa acção quando não temos meios para o fazer, sequer para inventar.

E tu, anjo negro, fantasma das minhas horas de solidão, onde estás, agora que de ti preciso...?

(música de Adriana Calcanhotto)