[Sofia (uma rapariga como outra qualquer) II]
"Passeio solitária pelas ruas desta cidade, por efémeros mas longos dias convertida, por efeito dos inúmeros motivos de forma e natureza diversa, se bem que com objectivo similar, que decoram todo o espaço, em tremendo pinheiro de Natal. Está frio, sinto-o entrar em mim por todos os sítios por onde pode - e até, para minha surpresa, por alguns por onde supostamente não deveria conseguir - e instalar-se junto da minha pele, desconfortavelmente. Sinto um húmido arrepio atravessar-se a espinha de uma ponta à outra, enterro as mãos nuas bem fundo nos bolsos do casaco. Não, não é psicológico, o frio. Pelo contrário: é real, bem real, demasiado real. Não há consolo, afastamento, alheamento mental que lhe valham. Pelo menos quando se deambula pelas ruas, não tão agasalhada como talvez devesse, em vésperas do solstício de Inverno...
Cânticos de Natal ouvem-se aqui e além, invadem-me a mente fria. Conheço-os; recordo-os das vezes incontáveis que os ouvi na televisão, na rádio, na música ambiente de algum elevador. Mas não são estes que me ocorrem; são, sim, aqueles que em criança aprendi na Igreja, as melodias alegres e ritmadas que louvavam o nascimento de um menino, desprovido de qualquer riqueza. Observo na montra rodeada de luzes coloridas de uma loja um presépio, paro por instantes a olhar para o pequeno cenário da Galileia aqui, nesta montra: a cabana de colmo, os montes de palha aqui e além; o burro e a vaca, seus habitantes de sempre, perto daqueles que a eles se acolheram numa qualquer noite fria - José e Maria -, pois que os seus os desprezaram, ajoelhados perante uma manjedoura de madeira irregular onde jaz, alheio ao cenário, no desconhecimento talvez do seu inescapável destino que para sempre mudaria o curso da História, um menino recém-nascido, de nome Jesus, a quem os profetas e sibilas, nas suas visões evanescentes, atribuíram a redenção dos homens; junto da cabana, como que a aproximar-se, um grupo de pastores; atrás, mais longe, ainda perante uma longa jornada, três reis magos que de terras distantes saíram para louvar Aquele que anunciará a Boa Nova, e para a ele ofertarem prendas dignas de monarcas; no topo da cabana, qual sinal de júbilo celestial, uma estrela repousa, adivinhando-se o coro de anjos entoando coros fantásticos em seu redor. Sorrio, triste. Como chegou o mundo a este ponto? Isto que aqui tenho diante os meus olhos, isto que está representado do outro lado desta lisa superfície de vidro é o Natal, o verdadeiro Natal - o nascimento do Salvador. Nele repousa, qual tesouro há muito esquecido pelos homens pelos quais nasceu há mais de dois mil anos, o verdadeiro espírito de Natal. Que tem ele a ver com o velho bonacheirão, de barbas e bigode de neve, vestido de rubro vermelho, que distribui prendas pelo mundo inteiro, atravessando os céus num trenó alegadamente mágico puxado por renas? Que tem o Natal a ver com o consumismo desenfreado, batuta invisível mas incontornável que pauta o ritmo da sociedade de hoje? Ó avó, que saudade das tuas prendas dadas, com um sorriso nos teus lábios, dizendo que era pelo Menino Jesus... pois que dele era, de facto, a noite da consoada; porque cruelmente lha tiraram...? Nos tempos modernos, como se explica a uma criança que, afinal, o Pai Natal não existe, e que, afinal são os seus pais e familiares que lhe dão os presentes? Que sabias tu disso, avó? Nada, nem precisavas. Deus existia, tinhas a certeza dele. Todos a tinham. O resto, seriam histórias, fantasias, devaneios para entreter a imaginação, que a felicidade deles não precisava para o que quer que fosse.
Retomo a marcha, enfrentando o frio da rua, ainda com a imagem do presépio na mente. Não me identifico com o catolicismo, pelo menos não mais. Considero-me cristã, se bem que não praticante, não por teima, mas por opção, por filosofia, se assim se quiser considerar. A minha mente é demasiado livre, incapaz de se prender a um qualquer ponto do imenso vazio que a rodeia. E entendo a fé é algo que se sente cá dentro, não como algo que se mostra lá fora; que sentido fazem, então, os rituais? Para quê deixar-me levar numa desfilada de encenações quando tudo aquilo que verdadeiramente conta está dentro de mim? Terei porventura menos fé do que uma daquelas senhoras - beatas, como pejorativamente se costuma dizer - que rezam de manhã, à tarde e à noite, vão à missa a cada domingo e dia santo, seguem o terço e tudo mais? Serei descrente por não fazer tudo isso? Sei que existes, Deus, que deves existir algures, mas isso é algo que não sei explicar, e que já desisti de tentar. Descobri-lo-ei um dia - descobrir-te-ei um dia - para o bem ou para o mal, não importa. Ainda assim, entristece-me pensar que a Humanidade foi capaz de deturpar o Natal a este ponto. A sua essência original perdeu-se, diluiu-se no meio da massa inerte, resiste nos corações daqueles poucos que recordam ainda a história do nascimento de Jesus. Mas estes poucos não se vêem na turba inconstante, na multidão que nesta época invade os centros comerciais, compra avidamente prendas para toda a gente, bombardeia amigos, conhecidos, e, até, no caso de alguns com menos decência - ou talvez não -, inimigos com mensagens de natal por telemóvel, cumprimenta meio mundo com um estupidificante sorriso de alegria forjado no rosto quase à martelada, ou longamente ensaiado para a ocasião festiva... qual ocasião festiva?
Às vezes penso que o erro deve ser mesmo meu. Porque haveria eu de estar certa e meio mundo errado? Afinal, eu é que sou a outsider, a fora do mundo... a verdade é que o Natal pouco ou nada me diz. Imagino que seja triste dizer uma coisa destas numa época destas, mas é verdade. Desconheço quase por completo a tradição de juntar a família na consoada para um jantar, uma vez que a minha estrutura familiar para além do meu núcleo foi, é e será sempre incapaz de tal - ao menos não a posso acusar de hipocrisia, tenho de o admitir. Época de paz, de amor, de reconciliação, diz toda a gente em toda a parte. Essa era uma parte da mensagem original. Mas era apenas o princípio. O Natal é só um dia! Um dia de inigualável pureza, irremediavelmente convertido à hipocrisia e ao cinismo pelo culto pagão da modernidade e do eterno consumo... Porque sorriem as pessoas agora, quando andam trombudas durante os restantes trezentos e sessenta e quatro (ou cinco) dias do ano? Porque se juntam agora, se nos outros dias não foram capazes sequer de trocar um singelo telefonema, uma carta com duas palavras que fossem? Porque se deve amar agora, quando tudo à nossa volta no restante tempo nos ensina a odiar? Época de paz? O meu espírito está em guerra, agora, mais do que nunca. Porque haveria ele de me dar tréguas neste momento?"
(João Campos (Fallen Angel), Sofia, excerto do capítulo 2)
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